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Educando para a pesquisa científica

A especialização, na pesquisa científica, é muito mais uma solução do que um problema. Ela permite que o jovem pesquisador entre em ação mais cedo, o que é vital em muitas disciplinas científicas, como, por exemplo, e em particular, a física. Muitas das grandes descobertas da física, como a mecânica quântica, foram realizadas por jovens de menos de 25 anos. A combinação de potência intelectual, ousadia e entrega total que levou a essa revolução é mais freqüente nessa faixa em que o vigor do corpo é máximo.

Por outro lado, o desenvolvimento da ciência leva, freqüentemente, a unificações, ou seja, à descoberta de semelhanças, analogias, entre áreas da ciência que pareciam nada ter em comum. Mais espetacularmente, ocorre que o aprofundamento de pesquisas em uma área acabe por identificá-la a outra, a priori imaginada independente. Ao descobrir que a luz era de natureza eletromagnética, James Clerk Maxwell unificou a ótica e o eletromagnetismo. É claro que descobertas desse tipo dificilmente serão feitas por um especialista. Mais ainda, o grande desenvolvimento havido, a partir de 1925, no conhecimento da estrutura molecular da matéria, aproximou muito a física da química, e as duas da biologia, tão logo os fundamentos moleculares dessa última foram descobertos.

Há uns sete anos o professor Roberto Lobo, então reitor da Universidade de São Paulo, chamou-me ao seu gabinete e me convidou para contribuir a um projeto seu que visava enfrentar esses problemas. Como preparar cientistas para essas pesquisas interdisciplinares que, já freqüentes, prometiam explodir em número, causando talvez grandes progressos científicos? Seu projeto era o Curso Experimental de Ciências Moleculares.

A idéia nascera por ocasião de uma visita a um laboratório francês de luz synchrotron, creio que em Grenoble. Esses laboratórios caracterizam-se pelo fato de permitirem uma grande variedade de experimentos, interessando a médicos, biólogos, bioquímicos, físicos, etc. Lá se tinha notado que muitos trabalhos eram repetidos. Por exemplo, experiências realizadas por químicos tinham sido essencialmente refeitas por físicos e por biólogos: visivelmente não estava havendo comunicação entre os vários grupos que utilizavam os aparelhos. Resolveu-se então criar um curso que fornecesse a jovens pesquisadores uma formação básica interdisciplinar, para que viessem a servir, no mínimo, de intérpretes entre as várias equipes de trabalho. O resultado obtido foi muito bom. Não seria possível fazer algo análogo aqui, adaptado à situação d USP?

Aceitei o convite e passei a integrar um grupo de professores que já vinha se reunindo, sob a coordenação de Hernan Chaimovich, para elaborar o projeto do curso. Para não parecer ambicioso demais, decidiu-se denominá-lo Curso Experimental de Ciências Moleculares.

Considerando os vastos conhecimentos exigidos mesmo por uma estreita especialização dentro de qualquer das ciências naturais e a rapidez com que se desenvolvem, não seria sensato pretender formar pesquisadores cujo campo de ação abarcasse várias ciências, ou mesmo várias especialidades dentro de uma ciência. O conceito de interdisciplinaridade que nasceu daquelas reuniões consiste nisso: (1) dar ao jovem estudante que optar por este curso uma formação básica em física, matemática, físico-química, biologia molecular e informática durante dois anos; (2) nos dois anos restantes, solicitar do aluno que, de acordo com o seu orientador, desenhe o seu próprio programa de estudos, utilizando-se de qualquer disciplina ministrada em qualquer unidade da USP, ou mesmo fora dela.

O primeiro biênio serve à idéia de interdisciplinaridade de duas maneiras: pela própria composição do programa de estudos, envolvendo disciplinas das várias que dominam o curso, e pelo contato, durante dois anos, entre colegas que se destinarão, provavelmente, a pesquisas em áreas diferentes. Assim agindo, pensou-se em criar vínculos duradouros entre jovens pesquisadores, que pudessem facilitar, até motivar, contatos entre diferentes unidades de pesquisa dentro da universidade. Pretendemos, assim, mantê-los especialistas, mas dotá-los de uma linguagem mínima comum e, sobretudo, de ``especialistas íntimos''em outras áreas. A interdisciplinaridade possível na ciência moderna é isso: a colaboração de vários especialistas para a resolução de um problema que não pertence a nenhuma das especializações.

Como importante subproduto encontramos magníicos exmplos de bom uso da USP como uma verdadeira universidade, antes que um conjunto de escolas. Um de nossos estudantes, a uma certa altura do curso, no segundo biênio, fazia cursos regulares na Poli e na Medicina, e seu orientador era um professor do ITA. Excepcional na USP, esta é uma situação comum no Curso de Ciências Moleculares.

Sou da opinião, hoje com muito mais segurança graças ao sucesso do curso, que essa experiência pode perfeitamente ser adaptada para outras áreas, com outros programas básicos, conjugando, por exemplo, direito, antropologia, sociologia, ou, num outro grupo, ecomomia, física e informática.

Em meus 37 anos anos de Universidade de São Paulo não me lembro de nenhum outro empreendimento ligado à formação de pessoal de alto nível que me tenha saisfeito tanto quanto colaborar no desenvolvimento e implantação dessa idéia simples e rica, que ocorreu, um dia, a Roberto Lobo.

Publicada em Revista USP
N. 39, 1998

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Henrique Fleming 2001-12-09