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Interdisciplinaridade

Henrique Fleming

7 de agosto de 1998

Coube-me uma vez receber o reitor da Universidade de Bagdá. Perguntei-lhe a idade de sua universidade e surpreendi-me com a resposta: 2000 anos. Incluía, e com razão, na história da instituição que dirigia, a história da famosa Escola de Medicina de Bagdá. E exagerava um pouco nas datas.

É a mais antiga universidade de que tenho notícia. Malgrado o nome, tratava-se efetivamente de uma universidade. Diretamente ligado a ela está o ilustre Hunayn ibn Ishak, que viveu no século IX, mais conhecido como Johannitius, cujas traduções de Platão, Aristóteles, Galeno, Hipócrates difundiram entre os árabes as fontes de cultura e do pensamento gregos. Sabendo-se que muitas dessas obras chegaram ao Ocidente através de eruditos árabes como Averróes, conclui-se que estamos ligados à Escola de Medicina de Bagdá por um fio contínuo. Convém, nos dias de hoje, ter este fato bem no topo da consciência. Da mesma tradição, mas muito mais famoso, Omar Khayyam, cuja longa vida se estendeu de 1048 até 1131, continua a nos confortar com os versos do Rubayat. Khayyam obteve sua educação em ciência e filosofia em Nishapur, no Irã, e foi famoso, em sua época, como cientista, mais do que como poeta. Um tratado de álgebra lhe deu prestígio, e o levou à corte do sultão Malik-Shah, onde recebeu as tarefas de reformar o calendário com base em observações astronômicas e de construir um novo observatório. Mais tarde obteve do sultão a imensa responsabilidade de prever acontecimentos importantes, que, nos nossos dias, curva os ombros de nossos economistas. Destacou-se nas áreas da filosofia, jurisprudência, história, matemática, medicina, astronomia...E poesia, como bem sabemos. Um surpreendente poema de Cardarelli ressalta sua ciência (da qual quase tudo se perdeu, a não ser um tratado sobre Euclides) vis-à-vis sua poesia, sem, naturalmente, sequer pensar em diminuir a importância desta, que julgava ser o desabafo do sábio: ``... da quel oscuro e flebile scontento/nasceva la grazia d'un ritmo...''.

Imagino que todo aluno da Escola de Bagdá fosse educado dentro desse espírito.

O ecletismo de Khayyam cedo se tornou impraticável como programa de educação. A especialização foi se impondo gradual e inexoravelmente. É verdade que a idéia de especialização é muito antiga, tão antiga quanto as religiões politeístas. No domínio do intelecto, ou como programa de educação, contudo, é fenômeno muito mais recente. Convém distinguir: há modos de pensar que exigem necessariamente territórios abertos, inconfinados. Como a filosofia. Não é possível confinar uma disciplina que inclui entre suas missões a reflexão sobre o todo e sobre si mesma. Nas ciências naturais, ao contrário, a tática do dia-a-dia levou à estratégia da especialização, e o sucesso então obtido a consolidou. Como, por outro lado, a formação de um pesquisador recapitula a atividade de pesquisa, a educação também se especializou. É óbvio que o mesmo se aplica à atividade de um profissional, como um engenheiro ou um médico, e à sua educação.

Mas é isso verdadeiramente uma educação? É desejável que a maior parte de nossos alunos universitários receba um ensino puramente vocacional? Estou certo de que isso não é desejável. Muitos educadores e filósofos têm se dedicado a conciliar a intensidade típica da formação do pesquisador especializado com os vagares que tornam possível uma verdadeira educação. Digno de menção é o projeto de Robert Maynard Hutchins, ex-presidente da Universidade de Chicago, tornado operacional pelo filósofo Mortimer Adler, e que deu origem à conhecida coleção ``Great Books'' da Encyclopaedia Britannica. Todos os alunos da pós-graduação daquela importante universidade deviam ser aprovados no curso dos ``Great Books'', que consistia na leitura daqueles textos considerados básicos para a nossa civilização, sem a intermediação de comentadores, ou seja, nos textos originais (traduzidos para o inglês, concessão máxima). Ao longo da leitura havia sessões de discussão que incluíam os professores. O curso podia ser feito mais de uma vez, e, o que foi conseguido com uma certa dificuldade, sempre valendo créditos. Na Universidade de Chicago a dificuldade maior foi encontrada no Departamento de Física, mas é inteiramente compreensível, pois, recém-saídos do projeto Manhattan, que construiu a bomba atômica, os físicos estavam no máximo do seu prestígio, e ofuscados por ele. Só aqueles de muita sabedoria podiam perceber que havia mais na educação do que um conhecimento, por profundo que fosse, da física. Mas existiam esses físicos sábios, e Enrico Fermi era um deles, e, por isso, os futuros físicos de chicago estudaram os clássicos.

Os livros clássicos começavam por Homero, incluíam o teatro grego, Platão, Aristóteles, Plutarco, e vinham até Freud, passando por Adam Smith e Marx ( o Manifesto e a primeira parte do Capital). Havia clássicos da ciência, como Hipócrates, Galeno, Arquimedes, Newton, Darwin. Algumas obras eram clássicos da língua inglesa, e, entre nós, teriam correspondente facilmente encontrável (Sterne seria, entre nós, substituído por Machado de Assis, provavelmente).

Este projeto foi mantido por muitos anos em Chicago e em várias outras instituições de ensino superior. Na verdade não se originou ali, e sim no St. John's College, onde constitui ainda, e espero que para sempre, o núcleo do ensino avançado. Em 1991 o jornalista americano David Denby se inscreveu na versão desse curso oferecida pela Columbia University, de Nova York. Em 1996 publicou um livro narrando a experiência. Chama-se, como se poderia imaginar, Great Books, publicado pela Simon & Schuster. Talvez mais interessante ainda seja a discussão crítica do projeto, contida no desconcertante Zen and the Art of Motorcycle Maintenance, um livro seríssimo sobre a educação de qualidade, de autoria de Robert Pirsig.

Nunca tive dúvidas sobre a importância de uma educação baseada nos grandes clássicos da nossa civilização. Atualmente, parece-me que não seja mais simplesmente desejável, mas uma necessidade imperiosa e urgente. Numa época de total hegemonia o recurso que resta é o pensamento independente. Nas épocas de crise surgem os filósofos, disse Nietzsche. Eu diria: nas épocas de crise só sobrevivem os filósofos, isto é, aqueles que submetem tudo ao crivo de sua própria e livre inteligência. Quem se encantou com a elegância e irresistível apelo da prosa de Adam Smith e depois foi sacudido pela crítica ao capitalismo de Marx, após ter descoberto, pelo estudo dos clássicos, que nossa inteligência vem de muito, muito tempo atrás, não será presa fácil da última moda, mas estará bem guardado contra ``certezas'' e ``inevitabilidades''. Outras certezas estavam erradas, outras inevitabilidades sequer resultaram viáveis.

Na Universidade de São Paulo fala-se em introduzir o ``ingresso na universidade'', em lugar do atual ``ingresso em um curso'', sendo a escolha da carreira uma etapa posterior. Apóio. Em muitas disciplinas, particularmente nas ciências naturais, o estudante de segundo grau (e, de fato, também os seus professores) raramente tem informações adequadas para tomar uma decisão, para fazer uma escolha. Aproveito para sugerir um programa do tipo ``Great Books'' para todos, no período que precede a escolha da carreira.



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Henrique Fleming 2001-12-09