Sakharov, de físico a cidadão

Henrique Fleming

Artigo publicado na Revista USP, N.10, 1991

Andrei Dmitrievich Sakharov nasceu em 21 de maio de 1921, em Moscou. Seu pai, Dmitri Ivanovich Sakharov, era um professor de física de considerável notoriedade, autor de vários manuais, dos quais um chegou a ser o texto oficial do sistema de educação secundária russo. Era um bom livro, e Sakharov filho, ao longo de toda a sua carreira, sempre o manteve atualizado através de novas edições, encarregando-se pessoalmente do trabalho. Seguramente iniciou seu aprendizado de física nesse livro, uma vez que foi educado em casa até os doze anos, exceto por uma interrupção de um semestre em que uma escola pública foi experimentada e julgada insatisfatória. Terminou seus estudos secundários em 1938, com dezessete anos, como o primeiro da classe. Entrou no curso de física da Universidade de Moscou e, em 1942, formou-se, com "a mais brilhante tese jamais apresentada na Universidade", na opinião de um contemporâneo. Como essa tese não sobreviveu, o comentário parece ser um desses exageros comuns em ambientes universitários, onde os superlativos são atribuídos com grande liberalidade. Mas algum valor certamente teve. Estava-se em plena guerra, e uma tese promissora era vital para se conseguir evitar as linhas de frente. Sakharov foi enviado para uma fábrica de armas no Volga, onde trabalhou como engenheiro até 1945. Conta ele que "desenvolveu várias invenções destinadas a aperfeiçoar os procedimentos de controle de qualidade da fábrica". Ou seja, não se tratava de pesquisa tecnológica, mas de produção de armamento conhecido. Em 1944, ainda trabalhando na fábrica, escreveu vários artigos sobre física teórica e os enviou a Moscou para que fossem examinados e criticados. Nenhum deles foi jamais publicado, mas, como ele mesmo disse, deram-lhe confiança em sua capacidade de realizar trabalho original. Em 1945 entrou no Instituto de Física Lebedev como estudante de pós-graduação. Seu orientador era o grande Igor Tamm, físico teórico que viria a receber o prêmio Nobel por suas pesquisas sobre radiação eletromagnética.

Em 1948 Tamm incluiu Sakharov em seu grupo de pesquisas que tentou, e conseguiu, desenvolver uma bomba termonuclear (bomba de hidrogênio). Em 1953 foi eleito para a Academia de Ciências de Moscou. Ninguém tinha sido membro titular com essa idade e, além do mais, sem passar primeiro pelo estágio de membro correspondente. Pode-se inferir disso que teve um papel vital na construção da bomba, semelhante ao que, nos Estados Unidos, foi desempenhado por Stanislaw Ulam, matemático polonês que percebeu que o esquema proposto por Edward Teller não iria funcionar, propondo a alternativa que afinal se usou. Nos dois casos foi necessário um outsider para, ainda não acorrentado aos esquemas vigentes, perceber falhas que escapavam aos olhos mais experientes, mas "viciados". Ulam era um matemático, e Sakharov um físico inexperiente, que estava aprendendo tudo, naquela ocasião. Em 1964 Sakharov se apresenta publicamente, pela primeira vez, como opositor a uma posição oficial. Numa reunião da Academia, comanda a resistência à eleição de um protegido de Lysenko, que era provavelmente o homem mais poderoso do complexo científico-tecnológico da União Soviética. Lysenko era um geneticista que se opunha às descobertas de Mendel, especialmente ao fato de que caracteres adquiridos não são hereditários. Ornando suas idéias de uma pretensa inevitabilidade à luz do marxismo-leninismo, Lysenko capturou os favores de uma longa série de governantes soviéticos, a começar por Stalin. Durou atéo fim de Khrushchev. Causou grandes prejuízos à agricultura soviética, pois todo o programa de aprimoramento das espécies de trigo, e outros cereais, para fazê-los adequados às condições extremas do clima russo, foi baseado em suas premissas falsas. Repetiu-se assim o desastre que, uns oitenta anos antes, fora causado na Alemanha pelo famoso químico Justus von Liebig, que, do alto de sua autoridade, decretou que era desnecessário adicionar nitrogênio ao solo, sob a forma de adubo, pois, sendo o nitrogênio abundantíssimo no ar, a terra evidentemente poderia fazer a qualquer momento o suprimento que quisesse. Em 1963, pela primeira vez na história, a União Soviética teve de adquirir no exterior (Estados Unidos, Canadá, Austrália, Alemanha Ocidental) grandes quantidades de trigo. Sakharov e muitos outros acadêmicos seguramente puderam relacionar o fiasco da agricultura com a ditadura de Lysenko, e dessa com a ditadura de verdade, do Partido, naquele momento representado por Nikita Sergeevich. Mas foi de Sakharov o gesto que suscitou pronta censura de Khrushchev.

Muito antes de merecer a consagração mundial por sua luta pela liberdade de expressão, Sakharov, como vimos, gozou de clara fama, mesmo que limitada aos meios científicos. Como no caso de vários outros militantes pela mesma causa, foi esta fama que lhe permitiu escapar do Gulag e viver em relativo "conforto", mesmo no episódio do exílio na cidade industrial de Gorkhi. Por outro lado, conhecedor de segredos militares brandidos como importantes, sua emigração foi considerada fora de questão pelo governo. Seu passado de cientista, portanto, lhe serviu quanto lhe desserviu. Há, por isso, interesse em saber em que se baseou sua reputação de cientista, ou seja, o que fez ele de tão importante. O tema é complexo, e envolve delicados julgamentos morais para os quais parece que não estamos ainda preparados. Sakharov foi chamado de "pai da bomba" soviética pela sua participação na concepção e realização da arma. Essa terminologia é infantil na sua simplificação. Nos Estados Unidos o "pai"da bomba foi Oppenheimer, um físico teórico com uma função administrativa.

Uma "vida paralela" à do ilustre dissidente russo é a do grande físico italiano Enrico Fermi. Um esboço da vida de Fermi ajuda a estabelecer mais nitidamente as diferenças entre os dois, no contexo da dominante semelhança. Primeiro, fique claro que Sakharov não é um Fermi: as estaturas são muito diferentes. Fermi deu passos importantes em direção à compreensão da natureza, e pertence à história da cultura. Sakharov, o cientista, foi um fenômeno local, e é possível que sua reputação, prévia à atividade política que lhe valeu o prêmio Nobel da Paz, repouse exatamente sobre os trabalhos protegidos pela censura militar. Fermi realizou grandes descobertas antes de participar do projeto Manhattan. Do ponto de vista científico, suas maiores realizações são da época em que trabalhava na Itália: a descoberta da estatística dos elétrons, hoje chamada estatísitica de Fermi, a teoria do decaimento fraco, a física dos nêutrons lentos (que lhe valeu o prêmio Nobel em 1938). Foi o último físico a ser um teórico e experimental de primeiríssima linha. Houve um momento em que não seria descabido considerar que fosse o melhor teórico e o melhor experimental em atividade!

Fermi nunca renegou seu episódio bélico, mas insistiu, mesmo diante de fortes pressões, que ele não se estendesse além da duração da guerra. Causou grande impacto nos meios científicos, onde sua influ6encia era imensa, talvez sem igual, por sua recusa a participar da construção da bomba de fusão. Voltou a se dedicar às pesquisas e pôde ainda dar uma notável contribuição à física das partículas fundamentais. Sua morte prematura foi, com toda a probabilidade, conseqüência de sua exposição à radioatividade. Tornou-se, por sua atuação em ciência fundamental, um herói na Itália e nos Estados Unidos, um novo herói dos dois mundos. O mais importante laboratório americano de física fundamental chama-se, não por acaso, Fermilab.

A história de Sakharov é bem menos linear. O tratamento tradicional dispensado pelas autoridades soviéticas aos seus cientistas ilustres nunca tinha sido mesmo grande coisa. Piotr Kapitza, nobelista, foi seqüestrado por Stálin, na época em que, trabalhando na Inglaterra no famoso Laboratório Cavendish, retornara em visita à Rússia. Como Patty Hearst, tornou-se, assim mesmo, amigo de seu seqüestrador, o que foi importante para a física soviética, como veremos a seguir.

Nunca houve físico russo maior do que Lev Landau, prêmio Nobel de 1972. Possuía a marca inequívoca do gênio, que é resolver um problema quando parece não ser ainda possível fazê-lo. Sua teoria dos líqüidos qüânticos conquistou um mundo novo, e nos deixa boquiabertos ainda hoje, passados bons quarenta anos. De onde ele tirou aquilo? Além de produzir uma física de primeiro nível ano após ano, criou uma escola de física teórica que é das mais importantes do mundo. E escreveu um tratado de física teórica que é a Summa dos nossos dias, e que lhe valeu o prêmio Lenin. Nos anos quarenta foi absurdamente acusado de espionar para os alemães e encarcerado. Salvou-o da morte, após um ano de frio e fome, o próprio Stálin, atendendo a pedido de seu amigo Kapitza.

Eram tempos mais duros, aqueles. Sakharov era um estudante da Universidade de Moscou, e sua carreira estava ainda por começar. Dos seus trabalhos posteriores à guerra, dois são de grande classe e geraram novas linhas de pesquisa, estendendo sua influência por todo o mundo: o primeiro foi uma proposta para o mecanismo que, no quadro do modelo cosmológico do "Big Bang", teria permitido a enorme abundância relativa da matéria em relação à antimatéria. O segundo foi um programa de unificação muito original, em que a gravitação é vista não como uma interação autônoma, senão como uma força de origem eletromagnética, do tipo das forças de Van der Waals. Vamos examiná-los um pouco mais de perto.

O modelo cosmológico do "Big Bang", em sua forma mais radical, supõe que tudo (quase tudo...) o que existe no universo tenha surgido do vazio. Pela lei da conservação da carga, então, a carga total do universo é zero. Outras leis de conservação do mesmo tipo, mas com muito menos suporte experimental, como a lei de conservação do número bariônico, introduzem restrições adicionais: a matéria, imediatamente após o instante inicial, deveria ser exatamente tão abundante quanto a antimatéria. Posteriormente, processos mais lentos devem ter levado o universo ao estágio atual, em que se tem praticamente só matéria. Mas para que isto aconteça, as leis da física não podem ser exatamente as mesmas para a matéria e a antimatéria. Sakharov foi o primeiro a perceber isto, e mostrou, após uma análise muito elegante por sua economia de meios, que seria necessário que que as leis da física não admitissem a transformação CP como simetria. O que vem a ser isso? Designa-se por C a operação que transforma cada partícula na sua antipartícula. P é a operação reflexão espacial, que associa a um sistema físico a sua imagem especular. Em 1957, os físicos chineses Chen Ning Yang e Tsung Dao Lee assombraram o mundo ao provar que as leis da física não são invariantes por P, ou seja, existem sistemas que são intrinsecamente diferentes de suas imagens especulares. Existem, até mesmo, sistemas cujas imagens especulares sequer existem na natureza (o neutrino é um exemplo). Logo após essa descoberta foi proposta, por Landau, Salam e outros, uma solução para manter o que se podia do status quo de então: que, se P não era uma simetria, que o produto de C por P, isto é, a sucessão das duas transformações, operação denotada por CP, ainda fosse uma simetria. Porém, em 1964, Christenson, Cronin, Fitch e Turlay descobriram que o sistema constituído pelos mesons K neutros apresentava uma violação da simetria conjecturada. O trabalho de Sakharov apareceu pouco depois dessa descoberta, e é lícito dizer que, enquanto Cronin et alii descobriram a violação, Sakharov descobriu por que se precisava dela. Uma área importante da cosmologia segue, hoje, a trilha aberta por Sakharov, e nomes ilustres, como Steven Weinberg, contribuíram de maneira brilhante à tentativa de resolver o problema.

Outro trabalho de grande originalidade foi a sua proposta de que a gravitação fosse uma força derivada das outras forças conhecidas. A idéia é que as forças gravitacionais se originassem das chamadas flutuações do vácuo. Trata-se de um conceito quântico. Na teoria quântica do campo eletromagnético, o princípio da incerteza não permite que se tenha completo controle sobre o valor do campo e sobre o número de fótons simultaneamente. Definindo-se o vácuo eletromagnético como o estado de zero fóton, então, no vácuo, permanecem campos residuais incontroláveis que se chamam as flutuações do vácuo, ou os campos do vácuo. Esses campos são reais, e têm conseqüências físicas mensuráveis. Um exemplo é o efeito Casimir. A Eletrodinâmica Quântica prevê que duas placas metálicas neutras colocadas no vácuo se atraiam com uma força muito pequena, mas perfeitamente mensurável. O agente desta força é o campo elétrico do vácuo. Sakharov, no contexto das idéias de Einstein sobre a gravitação, imaginou que a curvatura do espaço-tempo poderia causar um efeito semelhante, gerando forças despertadas pela reação dos campos ao "encurvamento" do espaço. Chamou a isto de elasticidade métrica, aliás, gravitação. O artigo original é breve e pouco detalhado, oferecendo uma formulação qualitativa do problema. A idéia foi levada adiante pelos físicos americanos Anthony Zee e Stephen Adler, que deram uma formulação completa em termos das modernas teorias de gauge não-abelianas. Adler conseguiu obter até uma fórmula para a constante de gravitação universal de Newton, infelizmente complicada demais para o nosso atual conhecimento técnico das teorias de gauge. Pode-se calcular o sinal, isto é, saber se a gravitação de Sakharov é atrativa ou repulsiva (é atrativa!), mas não temos condições de determinar o valor da constante. Deve-se dizer que a formulação de Adler não é isenta de dificuldades, podendo, no limite, não ter qualquer poder preditivo. Tecnicamente, o problema está na renormalização de teorias de gauge não-abelianas num contexto não-perturbativo, que estamos longe de entender.

É interessante notar que essas idéias seminais de Sakharov não interessaram à grande escola teórica russa, e sua exploração e desenvolvimento deveram-se exclusivamente a físicos ocidentais. Não é tão difícil por que...
    Sakharov foi laureadíssimo em sua terra e, depois, fora dela, por razões difíceis de conciliar. Foi nomeado Herói do Trabalho Socialista três vezes, recebeu o prêmio Stálin e a ordem de Lênin, em reconhecimento ao seu trabalho de "armeiro"; em 1975 recebeu o prêmio Nobel da Paz e foram-lhe cassadas as distinções anteriores. Graças a uma corajosa intervenção de Evgueni Lifshitz permaneceu como membro da Academia de Ciências, conservando os privilégios de regra. Em 1989 foi eleito deputado. Faleceu no fim daquele ano. Deixa um saldo positivo.

    A fabricação da bomba atômica foi um infeliz subproduto da construção da primeira pilha atômica, extraordinário feito científico de Fermi em 1942. Dizia-se então que, pela primeira vez, obtivera-se na Terra energia que não era proveniente do Sol, evento suficientemente importante para caracterizar o século. Posteriormente se descobriu que já tinham existido reatores nucleares naturais: ao menos um foi descoberto, pelos traços que deixou, na África, em antiga jazida de urânio. A própria fusão nuclear, que, sob forma não explosiva, poderá ser a fonte de energia do futuro, resulta ser a fonte de energia do próprio Sol. Quer dizer, a natureza já faz sozinha o que julgávamos ser prerrogativa, como o domínio do fogo, da incontestável habilidade humana. Não há nada de novo sob o Sol.

    Fermi e Sakharov tiveram parte de seus trabalhos tratados como assunto militar e, assim, de divulgação restrita ou mesmo proibida. No caso do mestre italiano tratou-se de uma pequena parte da obra, e certamente não a de maior interesse, ou a que lhe tenha construído a reputação. Fermi já era um monstro sagrado antes do projeto Manhattan. O caso do russo é diferente. As obras de Sakharov de divulgação autorizada (estou me referindo a seus trabalhos de física) cabem em um pequeno volume. É de imaginar que a maior parte de seu trabalho permaneça secreta, e assim só se pode avaliar os seus méritos indiretamente, pelos prêmios associados a esses trabalhos, recebidos pelo autor. Desta época da história da física sobreviveram vestígios curiosos. Desde há muito tempo o cosmólogo belga Lemaitre propusera que a história do universo começasse com um período de altíssimas temperaturas, onde a matéria, e mesmo os núcleos, achavam-se dissociados em suas partes componentes. Em Los Alamos, de posse de tudo o que se sabia de física nuclear, ocorreu a Fermi que se poderia estudar a criação dos núcleos leves, por fusão de núcleons (prótons e nêutrons), tornada possível pela gradual diminuição de temperatura que acompanhava a expansão do universo. Chama-se hoje a isso de nucleossíntese cosmológica dos núcleos leves. Esse estudo foi, aparentemente, levado a cabo por Fermi e Turkevich, e é muito citado nos livros de cosmologia, embora nunca tenha sido lido por ninguém!
    Quem sabe quando se poderá saber o que realmente fez Andrei Dmitrievich Sakharov?