Newton, grande físico experimental

Este texto não tem nada de original. Consiste na seleção e tradução de trechos do excelente livro de V.I. Arnol'd, "Huygens & Barrow, Newton & Hooke", (Birkhäuser Verlag), com uma redação talvez mais apropriada para os nossos estudantes. O objetivo dele é, na verdade, divulgar o livro de Arnol'd, um dos grandes matemáticos da atualidade. Êle é o A a sigla KAM, do famoso "Teorema KAM" da mecânica.

Sir Isaac Newton é costumeiramente apresentado como um grande físico teórico, o que ele, sem dúvida foi. O maior, e o primeiro: o inventor da física teórica! Mas Newton foi também um soberbo físico experimental e construtor de instrumentos. A sua Opticks é principalmente uma descrição de suas engenhosas experiências com a luz; a invenção e construção dos telescópios refletores atestam sua habilidade como construtor de instrumentos.

Neste pequeno artigo descrevo uma proposta de experiência feita por êle a Hooke, em uma famosa carta de 28 de novembro de 1679. O que surpreende na proposta é como ela é moderna. O que ela ensina é que a leitura dos clássicos pode ser recompensadora mesmo para as mentalidades mais pragmáticas e utilitárias.

A famosa carta a Hooke

Newton tinha relações tensas (eufemismo deliberado!) com muitos de seus contemporâneos. Em particular com Hooke. Os problemas eram quase sempre do tipo "quem descobriu o que", ou seja, prioridades científicas. O mundo então já era igualzinho ao nosso. A carta em questão é resposta a uma, conciliatória, que Hooke lhe mandara, propondo que trabalhassem em colaboração. Passo a citar Arnol'd (em azul), com inserções minhas, em vermelho:

Newton respondeu muito rapidamente--em quatro dias. Esta carta notável escrita por Newton em 28 de novembro de 1679 começa com a admissão de que ele está abandonando a filosofia e que esteve recentemente ocupado com outros assuntos. Aparentemente a idade estava pesando (Newton já tinha 37 anos, e esta era a idade em que se torna difícil interessar-se por matemática e por outros ramos da filosofia). "Apenas ouvi falar...", escreve Newton, "de suas hipóteses de composição dos movimentos celestes dos planetas...embora não haja dúvida de que são bem conhecidas do mundo filosófico...Minha afeição à filosofia tendo se esvaído, ..  estou quase tão pouco atento a isto como um profissional está atento à profissão de outro, ou um camponês está atento à cultura..."

A palavra "filosofia", na época, significava todas as ciências exatas. A física era então chamada de filosofia natural. Os outros assuntos sobre os quais Newton escreveu consistem, ao que tudo indica, em sua paixão pela alquimia. (Aparentemente ele não contava isso como filosofia, embora o objetivo desta ciência fosse encontrar a pedra filosofal). Newton possuía um grande laboratório de química (ou, se quisermos, de alquimia) e, tendo trabalhado intensamente entre as idades de 20 e 30 anos em matemática e física, fazendo aí muitas coisas, estava agora interessado em obter ouro. (Fenômeno que se mantém, mutatis mutandis, em nossos dias: obter ouro agora é trabalhar em Wall-Street ou equivalente, como físico ou matemático). Colecionou um grande número de receitas preservadas da Idade Média, e pretendia manufaturar ouro de acordo com as instruções contidas nelas. Os esforços que dedicou a isso foram significativamente maiores do que aqueles gastos com seus trabalhos de física e matemática, mas não obteve resultados úteis. É verdade que Newton não esteve sempre convencido disso. Diz-se que em seus cadernos (e ele anotava seus experimentos em detalhe, descrevendo o que ele misturava com o que, e que resultados obtinha, de maneira que, se obtivesse ouro por acaso, poderia reproduzir o processo) há um trecho em que, depois de uma detalhada descrição das ações realizadas, ele comenta o resultado: "Fedor terrível. Parece que estou perto."

O problema dos corpos em queda.

Depois de dizer que está muito velho para a pesquisa, Newton propõe a Hooke uma experiência para determinar se, como dizia Copérnico, a Terra está em movimento não só em redor do Sol, mas também em redor de si mesma. Voltemos a Arnol'd:


De fato, de acordo com os princípios da invariância de Galileu, é impossível descobrir um movimento retilíneo uniforme, por si só, mas, em princípio, uma rotação pode ser observada (sem comparar com outro corpo, isto é). Por isso, diz Newton, afim de convencer aqueles que não acreditam na teoria de Copérnico (que a Igreja Católica, por exemplo, iria reconhecer só em 1837) é necessário testá-la experimentalmente. Aparentemente Newton foi o primeiro a se pôr o problema de uma verificação experimental da rotação da Terra. Além disso, ao propor o problema a Hooke, Newton sugeriu um método que, em princípio, tornaria possível fazê-la.

A idéia é a seguinte: suponha um mastro vertical alto, e duas esferas, uma a uma pequena altura, a outra no tôpo do mastro. Para simplificar, o mastro está no equador. Por causa da rotação da Terra, ambas as esferas têm a mesma velocidade angular, que é a da Terra. Mas as velocidades tangenciais são diferentes, para as duas esferas: a do alto terá uma velocidade tangencial maior. Como, pela inércia, essa velocidade se mantém inalterada, a esfera do tôpo vai atingir o chão mais à frente do mastro do que a esfera de baixo. Então, para comprovar a rotação, basta verificar este fato. No entanto, para as alturas de que se dispõe, a diferença é mínima, e muito difícil de detetar. Vamos ver como fazê-lo.


A experiência

Na realidade, basta verificar se uma esfera que cai sem ser disturbada cai na vertical ou "adiante" dela (a experiência dá resultado nulo nos pólos, e máximo no equador). Newton propôs a Hooke a seguinte técnica: coloca-se sob a esfera, bem centrada, uma cunha (ele diz "a steel"). A esfera, ao cair, irá para um lado ou outro da cunha. Se a Terra gira, ela deverá cair para um dos lados, aquele que corresponde ao sentido da rotação. Contudo, o efeito é muito pequeno, para as alturas disponíveis. A idéia de Newton, muito moderna, é usar um grande número de esferas (ou um grande número de quedas da mesma esfera) e contar quantas vezes ela cai para cada lado da cunha. Se o número for o mesmo, dentro da precisão consentida pela estatística, a Terra está parada. Se ela gira, a esfera cairá mais vezes para um lado do que para o outro. Acredito que esta tenha sido a primeira vez que a estatística tenha sido usada para "amplificar" um efeito muito pequeno.

A experiência foi realizada por Hooke, com resultado positivo. Ele estava muito bem aparelhado para fazê-la, pois era empregado da Royal Society com a função de, semanalmente, realizar, para os membros, demonstrações experimentais de fenômenos recentemente descobertos, por ele ou por outros. Foi uma experiência muito importante, e o resultado foi claro. Podemos, assim, dizer que a primeira demonstração absoluta da rotação da Terra foi realizada, em colaboração, por Newton e Hooke. Mas sua colaboração terminou aí. Logo depois voltaram a brigar...



Created on february 21, 2002